por Celso Lugaret
Nunca
me senti tão velho como nesta 5ª feira (13), quando, acamado com forte gripe,
só fiquei sabendo pela mídia e pelas redes sociais que a Polícia Militar
barbarizara o centro de São Paulo, reprimindo bestialmente os manifestantes que
(até então) protestavam pacificamente contra o aumento das tarifas de
transporte coletivo.
Foi a
confirmação do que venho alertando há anos (vide aqui, p. ex.):
está em curso uma escalada de fascistização em São Paulo, orquestrada pelo
governador Opus Dei Geraldo Alckmin, com a cumplicidade
de figurinhas carimbadas como o reitor TFP João
Grandino Rodas (da USP) e tendo como principais provocadores os brucutus da
tropa de choque da PM, vulgo Rota (aquela que se orgulha de ter coadjuvado o
terrorismo de estado nos anos de chumbo, que é sempre denunciada
pelas entidades internacionais de defesa dos direitos humanos por suas
execuções maquiladas em resistência à prisão e que os
vereadores paulistanos da bancada da bala querem
homenagear com uma salva de prata).
A
aposta dessa gente é numa nova ditadura. E, se o governo federal a continuar
subestimando, o ovo da serpente vai ser chocado até que uma crise de maiores
proporções crie um cenário favorável à sua eclosão. Os petistas parecem gostar
de viver perigosamente; eu detesto saber que há uma lâmina de guilhotina
pendente sobre minha cabeça.
Como estive ausente do palco dos acontecimentos, prefiro não produzir um relato
jornalístico da nova blitzkrieg.
Sirvo-me,
então, dos principais trechos do depoimento do jornalista e historiador Elio
Gaspari, colunista da Folha de S. Paulo e de O Globo,
que me pareceu o mais satisfatório da grande imprensa.
A PM COMEÇOU
A BATALHA DA MARIA ANTÔNIA
Quem acompanhou a manifestação contra o
aumento das tarifas de ônibus ao longo dos dois quilômetros que vão do Theatro
Municipal à esquina da rua da Consolação com a Maria Antônia pode assegurar: os
distúrbios de ontem começaram às 19h10, pela ação da polícia, mais precisamente
por um grupo de uns 20 homens da Tropa de Choque, com suas fardas cinzentas,
que, a olho nu, chegaram com esse propósito. Pelo seguinte:
Desde as 17h, quando começou a
manifestação na escadaria do teatro, podia-se pensar que a cena ocorria em
Londres. Só uma hora depois, quando a multidão engordou, os manifestantes
fecharam o cruzamento da rua Xavier de Toledo.
Nesse cenário havia uns dez policiais. Nem
eles hostilizaram a manifestação, nem foram por ela hostilizados.
Por volta das 18h30 a passeata foi em
direção à praça da República. Havia uns poucos grupos de PMs guarnecendo
agências bancárias, mais nada. Em nenhum momento foram bloqueados.
Numa das transversais, uns 20 PMs
postaram-se na Consolação, tentando fechá-la, mas deixando uma passagem
lateral. Ficaram ali menos de dois minutos e se retiraram. Esse grupo de
policiais subiu a avenida até a Maria Antônia, caminhando no mesmo sentido da
passeata. Parecia Londres.
Voltaram a fechá-la e, de novo, deixaram
uma passagem. Tudo o que alguns manifestantes faziam era gritar: "Você é
soldado, você também é explorado" ou "Sem violência". Alguns
deles colavam cartazes brancos com o rosto do prefeito de São Paulo,
"Malddad".
Num átimo, às 19h10, surgiu do nada um
grupo de uns 20 PMs da Tropa de Choque, cinzentos, com viseiras e escudos.
Formaram um bloco no meio da pista. Ninguém parlamentou. Nenhum megafone
mandando a passeata parar. Nenhuma advertência. Nenhum bloqueio, sem disparos,
coisa possível em diversos trechos do percurso.
Em menos de um minuto esse núcleo começou
a atirar rojões e bombas de gás lacrimogêneo. Chegara-se a Istambul.
Atiravam não só na direção da avenida,
como também na transversal. Eram granadas Condor. Uma delas ficou na rua que em
1968 presenciou a pancadaria conhecida como "Batalha da Maria
Antônia"... (por Elio Gaspari)
Acredito
que valha a pena tornar mais conhecida uma resposta que dei no site do CMI
(vide aqui) a um comentarista sectário
e desrespeitoso para com o Jacob Gorender, a quem acusou de haver jogado
a toalha quando defendeu a necessidade de um estado democrático,
ao invés da abolição pura e simples do estado.
A
frase que ele citou do Gorender, de 2006, foi a seguinte:
"Eu
considero que o Estado não vai desaparecer. A sociedade moderna é de tal
maneira complexa, constituída de segmentos, não só de classes sociais, mas são
os idosos, os homens, as mulheres, os profissionais de várias áreas, a
diferença entre países. Quer dizer, tudo isso exige uma escala de prioridades.
E quem é que vai tomar a iniciativa disso? É necessário um órgão superior que é
o Estado. E que seja um Estado democrático, obviamente. Por isso eu falo em
democracia..."
Preferi
não partir para o bateboca costumeiro nesses fóruns virtuais, aproveitando,
isto sim, a oportunidade para aprofundar a questão. Creio que as colocações
abaixo contribuem para a reflexão sobre caminhos possíveis para a esquerda,
agora que os trilhados no século passado parecem definitivamente exauridos.
O
ESPONTANEÍSMO PODERÁ TER UM NOVO PAPEL?
O Gorender, como eu, procurou uma
alternativa ao esgotamento dos modelos revolucionários do século passado. Mas,
ao erigir coletivos minoritários, conjugados, como o novo sujeito da revolução,
parece-me ter superestimado o poder de fogo e a disposição para atuação
conjunta dos comunistas, anarquistas, gays, militantes ambientais, feministas,
idosos, negros, desempregados, estudantes engajados, jovens revoltados, adeptos
da descriminalização da maconha, etc., etc.
Jornalista ferida no olho por bala de borracha da P.M
De certa forma, ele apenas substituiu o
proletariado por essa espécie de sujeito
revolucionário múltiplo,
mas manteve os conceitos tradicionais, inclusive o da necessidade de uma
vanguarda regendo a orquestra ao longo do processo, e também de um estado, ainda
que democrático.
Partindo da mesmíssima constatação --a
de que nossos desafios atuais exigem uma mudança profunda de estratégia e
táticas--, eu cheguei à conclusão de que a era da internet faculta um novo tipo
de espontaneísmo, com o Movimento do Passe Livre, os Occupy, os escrachos de
ex-torturadores e outros protestos articulados pela web, as respostas imediatas
às medidas autoritárias (proibição da Marcha da Maconha) e a
posicionamentos antipáticos (churrascão da gente
diferenciada), etc.
Isto tudo não irá muito longe em
circunstâncias normais, pois a indústria cultural vai continuar mesmerizando
seus públicos, sem que tenhamos como furar o bloqueio e fazer a consciência
penetrar nas grandes massas bovinizadas (pois submetidas à lavagem cerebral
ininterrupta do sistema).
Mas, com o agravamento da crise
econômica capitalista e das catástrofes ambientais decorrentes das alterações
climáticas, em meio ao caos que vai se estabelecer e à indignação dos viciados
no consumismo quando sua droga escassear e eles sentirem os
rigores da abstinência, poderá, sim, abrir-se uma janela
revolucionária.
Então, esses grupos que desde já lutam
nas ruas, com a experiência acumulada nos muitos confrontos que até então
travarão, talvez somem forças para oferecer uma alternativa à sociedade. Ou
seja, a vanguarda seria mais ou menos a que o Gorender anteviu, só vindo,
contudo, a afirmar-se na fase superior, decisiva, da luta. Por enquanto,
os coitadezas por quem os manifestantes paulistanos lutam continuarão vendo-os
como vândalos, pois assim falava Globotustra...
Na hora da verdade, contudo, estará em
jogo a própria continuidade da espécie humana, que o capitalismo conduz
diretamente à extinção. Vamos torcer para que o instinto de
sobrevivência, no frigir dos ovos, fale mais alto.
Por último: depois de tudo isto,
haveria, com certeza, condições para substituir-se o estado pela democracia
direta. Mas, difícil mesmo é chegarmos até lá.
Então, não há por que nos digladiarmos
desde já em intermináveis arranca-rabos sobre o que virá
depois.
Darmos um fim ao pesadelo capitalista
será uma tarefa coletiva; idem, a reconstrução da sociedade por cima dos
escombros da exploração do homem pelo homem. Se as pessoas conseguirem se
libertar dos grilhões atuais, decerto encontrarão, no momento certo, os
melhores caminhos para a instauração de uma sociedade de homens livres,
igualitária e justa.